Saturday, February 25, 2006

Gabo


A luz é como a água
Jóia cristalina
Que renova e anima
Purifica e acalma




Rebenta enorme represa
De sentimento contido
Encharca o solo garrido
Semeia amor e beleza

Transforma o dia tristonho
Prisma multicolorido
Basta um feixe dividido
E tudo torna-se sonho

Por onde navego inteira
Pés na proa, olhar no mar
Sem medo de me afogar
Em noites de lua cheia

Porque a luz é como a água
E com ela se confunde
Mistura-se e se funde
Refletindo a minha alma

Saturday, February 04, 2006

Pragmático

Era um glutão, sempre o fora. Desde as primeiras letras. Adorava os ás enormes daquelas cartilhas gorduchas; o desenho sinuoso que ele apreciava primeiro com os olhos, depois com os dedos, e, por último, com a boca inteira. Saboreava os ós como quem prova um manjar delicado, num movimento inocentemente erótico, até que destes restasse apenas o chapeuzinho franzino. Pequeno sinal deixado somente por vaidade.

Aprendeu a enxergar muito além das simples entrelinhas. Estava faminto.
Depois descobriu a pontuação e com ela o sentido da palavra preferência. Adorava cozinhar e fazia questão de preparar o repasto ele mesmo, cuidadosamente. Algumas vírgulas, um ponto final, talvez três seqüenciados, isso dependia bastante da ocasião, do humor, da companhia...
Não apreciava muito o travessão, verdadeiro arrasa garganta que arrastava com ele o sabor divertido de um olhar sem palavras. Preferia comer em silêncio, degustando cada ponto e vírgula. As pausas prolongadas quase sempre eram seguidas de uma boa surpresa. E para ele, exclamações de sobremesa eram bem-vindas. Ajudavam a digerir. Enzima catalisadora a acelerar o compasso daquela vida pontuada por altos e baixos.

Era sua única paixão até conhecê-la. O modo sublime com o qual ela pronunciava as palavras o fez esquecer todo o resto. Ficou fascinado por sua beleza, seus gestos suaves, sua dicção mais que perfeita. Deixou-se embalar por sua voz sonora, sua mão macia, seus olhos de rainha. Ela era um sonho. Ponto.

O casamento realizou-se alguns meses depois. No dia marcado tudo estava em seu lugar. Parecia nervoso, e era verdade. Sentia-se como um parênteses mal colocado, sem sentido, abandonado na frase. Ela, radiante, distribuía sorrisos a todos. “Fabulosa!”, pensou.
Apesar do calor, suportou bem a cerimônia. As roupas tinham um caimento perfeito já que ele emagrecera (graças à dieta que ela sutilmente sugeriu). Mesmo assim não se achava digno de tamanho primor e na ânsia de tomá-la por esposa engoliu com avidez a interrogação que o Padre ofereceu.

Morreu sufocado.
No meio da oração.

Thursday, February 02, 2006

Ana Júlia


Chama-se Ana
Talvez fosse Severina
Carioca, nordestina
Beatriz ou Juliana
Esta é Ana

E ela ama
Ama Ana violada
Em seu íntimo humilhada
Alma, mesa, banho e cama
Mas ela é Ana






Já não se engana
Ana fibra, Ana forte
Ana vida, Ana morte
Ana dor que dela emana
Ana

Do começo ao fim é Ana
Como Hannah um palíndrome
Cara doença, uma síndrome
De não padecer e ter gana
Ana é

Ana, Naa, Aanagrama
Ana multifacetada
Anjo ou demônio encarnada
Minha, tua, nossa hermana
Ana é mulher


Para as Anas, as Júlias, Julianas da vida.